RELATÓRIO DO JORNALISTA HIRAM DE LIMA PEREIRA
RELATÓRIO DO JORNALISTA HIRAM DE LIMA PEREIRA, DIRETOR DO DEPARTAMENTO DE ADMINISTRAÇÃO DA PREFEITURA DO RECIFE, À ASSOCIAÇÃO DA IMPRENSA DE PERNAMBUCO, AO SINDICATO DE JORNALISTAS PROFISSIONAIS DO RECIFE E AO CLUBE DE IMPRENSA DE PERNAMBUCO
Estimados confrades: Atendendo ao pedido que me foi feito pela Assembléia geral Conjunta da Associação da Imprensa de Pernambuco, Sindicato de Jornalistas Profissionais do Recife e do Clube de Imprensa de Pernambuco, apresento a seguir a relatório sobre o seqüestro de que fui vítima no dia 10 do corrente, até o meu resgate, no dia 19, obtido sem dúvida alguma, pela força do movimento de solidariedade e dos protestos gerais contra o clima de desrespeito às liberdades democráticas e de provocações golpistas que se observou em nosso Estado sob o pretexto de reprimir uma greve universitária.
O Seqüestro
Eram 14:15 horas do sábado, 10 do corrente, quando fui procurado em minha residência por um indivíduo bem vestido, que me trazia um recado do Prefeito Miguel Arraes para que eu comparecesse com urgência à Reitoria da Universidade do Recife. O referido "portador" adiantou que se encontrava com um jipe da Prefeitura, o que foi por mim comprovado indo à varanda do primeiro andar em que moro. Embora estranhando o convite e o local para onde era feito, desci, tomei o veículo e, logo a 30 ou 40 metros adiante, fui cercado por mais três indivíduos que reconheci como policiais da Secretaria de Segurança Pública do Estado de Pernambuco. Nesse momento, como era natural, sentindo tratar-se de uma cilada, reagi procurando desvencilhar-me deles. Dominado, protestei contra a violência e declarei a minha qualidade de auxiliar imediato do governo municipal, ao que me responderam: "O senhor explicará isso ao General". Fui conduzido para o quartel da Cia. De Guardas, à rua Visconde de Suassuna; ali, recebido por uma guarda que me apontava suas metralhadoras portáteis, fui metido num estreito cubículo fechado a cadeado. Apenas me pediram a carteira de identidade, por mim entregue na suposição de que desejavam comprovar as alegações que eu fizera na hora do seqüestro. Cerca de meia hora depois, sem uma palavra, sem qualquer pergunta, fizeram-me entrar num pequeno quarto. Um sargento indicou-me a porta de entrada e entrei só. Não havia ninguém no referido quarto. Mal entrei, senti-me agarrado pelas costas. Puxaram-me os braços para trás e amarraram-me fortemente os pulsos, enquanto enfiavam uma fronha em minha cabeça. No mesmo instante, com um pedaço de pano, me amordaçaram tão violentamente que durante quatro a cinco dias permaneci com os lábios feridos e inchados. Passaram, então, a remexer nos meus bolsos. Sentia que a operação estava sendo comandada por alguém que era obedecido pelos demais. Esse "comandante" de tão corajosa operação falava disfarçando a voz, que se assemelhava a de um demente ou retardado mental. Tive a impressão de que me substituía, nos bolsos, documentos e papeis. Tudo foi feito dentro do maior silêncio, silêncio repetidamente recomendado pelo "comandante" com freqüentes "psius". Revolveram toda a minha roupa, inclusive tirando-me sapatos e meias. Terminada essa operação, jogaram sobre mim o que imaginei fosse um capote ou um cobertor; puseram em minha cabeça, creio, que um capacete e, dentro dessa escuridão em que me vi, fui conduzido para um veículo (pareceu-me uma caminhoneta rural) e ali deitado de costas, sobre as mãos atadas, com as pernas encolhidas, no assoalho. Alguém que percebi ser militar, sentou-se no banco e colocou os pés sobre a minha barriga. E o veículo partiu. Calculo a hora como entre 15:30 e 16:00 horas. Depois de muito rodar, estacionou por algum tempo em local de regular trânsito de automóveis, inclusive de ônibus e caminhões. Rodou novamente e mais uma vez estacionou. Ai, já não senti rumores de trânsito, mas apenas vozes próximas e um rádio. Nesse local senti a passagem de um trem muito perto do veículo em que me achava. Aproximou-se, deslizando, um avião a jato. Os que me conduziam, exceto o tal que colocava os pés sobre o meu corpo, deixavam o veículo durante essas paradas. O avião, sempre deslizando, afastou-se. Voltaram ao veículo e mais uma vez rodaram por cerca de 10 minutos. Faziam ziguezagues. Por fim, novamente, nos encontramos junto do avião a jato, para o qual me conduziram. Sentado no avião, sempre amarrado, amordaçado e com o saco na cabeça, fui alvo de mais uma nova medida de "segurança": amarraram-me também as pernas. O avião partiu. Pelo pano, percebi as luzes da pista e depois as luzes da cidade lá embaixo. Calculo a decolagem entre 17:30 e 18:30 horas. Voamos aproximadamente duas horas. Descemos, fui novamente colocado, na mesma posição anterior, em uma outra camioneta (posso assegurar que não era a mesma e me pareceu ser uma "combie") na qual não viajei mais de 10 ou 15 minutos. Conduziram-me a uma cela, de porta batida, piso de mosaico, onde havia uma torneira enferrujada e entupida e duas latrinas, uma entupida e exalando mal cheiro. Foi ai que me tiraram as amarras, a mordaça, a fronha e, também, a roupa. Fiquei de camisa e cueca, tendo apenas o mosaico como cama. Durante o vôo falavam em João Pessoa, Campina Grande e Natal, mas tive a impressão de que era para me desorientar. Lá para as tantas, depois de mais de uma hora de vôo, um deles disse: "Está bom aqui; vamos jogar ele lá embaixo". E imediatamente pôs a mão sobre o meu coração para ver se havia disparado. Passei na cela a que acima me referi (e onde cheguei à 20:30 horas) a noite do sábado e até a quarta-feira pela madrugada. A cela estava localizada numa Base Aérea. Embora não sentisse disposição para alimentar-me, a comida que me entregavam, através de pequena janela aberta na porta, era farta e de boa qualidade. Durante esses dias, nenhuma palavra ou pergunta me foi dirigida. Pela 03:30 horas da madrugada de quarta-feira, dia 14, fui despertado por dois oficiais da Aeronáutica, sendo que um deles, era o que, em trajes civis, me deixara na dita cela, na noite do sábado. Mandaram que eu me vestisse. Dos meus objetos, senti falta, apenas, de uma agenda de bolso e dos óculos. Num jipe, esses dois oficiais levaram-me para junto de uma avião da FAB, de dois motores, creio que um DC-3, não sei bem. Durante o trajeto, da cela para o avião, perguntaram-me se eram comunistas o Prefeito Miguel Arraes e o Vice-governador Pelópidas Silveira e acharam graça na minha negativa. Depois perguntaram se minha esposa era comunista. Respondendo negativamente, aproveitei para dizer que a havia deixado só, grávida e doente. Tentava com isso obter alguma referência sobre minha família. Cochicharam, então, entre si, mas de modo a que eu pudesse perceber mais ou menos o seguinte: Devíamos tê-la tratado com mais consideração: afinal, ela nos recebeu tão bem..."E logo me perguntaram se eu sabia que o país estava em "estado de sítio". E procuraram fazer-me crer que me encontrava em Salvador. Afinal, fizeram-me entrar no avião, que estava vazio. Ali novamente vendaram-me os olhos. Eram 04:00 horas da madrugada e calculo ter o avião decolado entre 04:20 e 04:30 horas, voltando a pousar às 07:30 horas. Pude verificar isso porque com os braços cruzados consegui ver, baixando bem a vista, a posição dos ponteiros do relógio de pulso sempre que o sol se refletia sobre eles. Mais uma vez colocaram-me num jipe que partiu em disparada e quando me retiraram a venda dos olhos achava-me (o que descobri depois) num úmido, infecto e abandonado xadrez do também abandonado Forte N. Sra. Dos Remédios, em Fernando de Noronha. Guardado por soldados de baioneta calada, ali fiquei poucas horas. Menos de duas, talvez, pois não vi a hora em que, ainda de jipe, já agora sem venda e confirmando achar-me em Fernando de Noronha, fui levado para o quartel da Cia. De Guardas daquele Território e conservado preso, num grande armazém onde colocaram uma cama, até às 15:00 horas do domingo, 18. Em Fernando de Noronha fui visitado pelo Governador do Território e por um médico militar. Assegurou-me o governador que eu não sofreria qualquer violência física enquanto permanecesse na guarnição por ele comandada. Mandou fornecer-me escova, pasta e sabonete. Permaneci, porém, sob guarda à vista, de baioneta calada, guarda essa que me acompanhava até ao sanitário e ao banheiro. Todos esses dias continuei ignorando tudo quanto se passava no país. A nada me respondiam. No sábado, 17, fui levado à presença de um tal Major Serpa que, em companhia do sargento Almério, fez-me um interrogatório dizendo-se encarregado de um inquérito Policial Militar instaurado por ordem do General Comandante do IV Exército. Ameaçou-me com não sei qual artigo do código Penal Militar pelo qual poderia eu ser condenado até seis anos de prisão, caso dificultasse a "execução da Justiça Militar", falseando, negando ou calando durante o interrogatório. No geral esse interrogatório caracterizou-se pelo ridículo de certas perguntas à base de anotações existentes em minha agenda de bolso. Aniversários, casamentos, festas e solenidades, tal como anotação de datas e horas de compromissos de minhas funções no serviço público, tudo foi perguntado, respondido e ditado pelo major para o datilógrafo. Outras perguntas, também por mim respondidas, diziam respeito às minhas opiniões e convicções políticas acerca de vários problemas nacionais e internacionais. Também algumas observações minhas sobre problemas municipais e meu comportamento pessoal frente ao Departamento que dirijo, observações que eu havia anotado resumidamente para depois desenvolver, foram tidas pelo inquiridor como "planos altamente subversivos", não aceitando, embora fazendo constar do depoimento, as explicações que dei. Já no fim do interrogatório, apresentou-me um papelucho contendo cinco ou seis nomes incompletos aos quais era atribuída função de dirigentes comunistas. Queria que eu identificasse aquelas pessoas. Afirmou que o papelucho havia sido encontrado em meu poder. Protestei contra tal afirmativa e recusei-me a aceitar aquela acusação. Quanto à pergunta se conhecia pessoas com aqueles nomes, disse que conhecia várias, recusando-me a atribuir a qualquer delas as referências feitas no pedaço de papel que me apresentava. Para terminar este relato, que já se torna extenso, no domingo,18, fui visitado pelo governador de Fernando de Noronha que me disse estar eu em liberdade, juntamente com mais três outros que só nesse momento vim a saber que ali se achavam: Irineu Ferreira e Davi Capistrano, jornalistas, e Ramiro Justino, presidente do Sindicato de Carris Urbanos. Tomamos um avião da FAB, sem qualquer escolta. No Recife, porém, fomos recebidos por uma escolta da Polícia do Exército, armada de metralhadoras que eram apontadas diretamente contra cada um de nós. Postos numa camioneta, fomos conduzidos da Base Aérea do Ibura para o quartel do Grupo de Obuses, na Estrada de Paulista. Ali, em imundos colchões, passamos a noite e o dia seguinte até às 16:00 horas quando, um por um, fomos sendo chamados. Fui o terceiro. Levado à presença do Major Serpa que me intimou a comparecer no dia 03 de julho ao quartel General do IV Exército e perguntou se eu sofrera alguma coação. Respondi que sim: coação física e psicológica, vítima de um seqüestro, isolado da minha família e do mundo por mais de uma semana, além da brutalidade com que fui amordaçado, encapuçado e amarrado, encerrado em cela de porta batida depois de ser transportado em avião à jato para destino desconhecido. A seguir fui submetido a exame de corpo de delito, por médicos que se diziam do corpo de saúde do Grupo de Obuses. No laudo de exame consta "escoriações no pulso esquerdo causadas possivelmente por instrumentos contundentes, em vias de cicatrização e de aproximadamente cinco dias". Essas escoriações foram conseqüência da violência com que me amarraram os pulsos. Pediram-me para fazer no laudo uma declaração se naquela unidade sofrera eu qualquer violência, ao que acedi, escrevendo mais ou menos o seguinte: - "Declaro que nesta unidade (1/7º R.º) onde entrei às primeiras horas de ontem, nada sofri, além da reclusão em que me encontrava, declaração que faço às 16:45 horas de 19/06/1961". Despachado pelos dois médicos, ainda sob escolta fui conduzido a um jipe onde se achavam o motorista, um sargento armado e um soldado com metralhadora portátil. Essa pequena escolta deixou-me no varadouro, em Olinda. Tomei um carro de praça, rumando para o Recife, chegando à Prefeitura mais ou menos às 17:30 horas do dia 19 de junho de 1961. Eis o meu relato, estimados confrades. Creio que fui um tanto prolixo, pelo que peço desculpas. Esta é porém uma oportunidade que democraticamente me oferecem, já que toda a imprensa do Recife, por ordem de seus proprietários, recusou-se a publicar qualquer declaração minha acerca dos fatos acima narrados. E isso depois de, durante vários dias, haver divulgado amplamente a versão dos meus seqüestradores e de outras autoridades direta ou indiretamente ligadas aos fatos, inclusive a negativa durante os primeiros dias de que soubessem do meu paradeiro. Um desses jornais chegou mesmo a publicar uma pequena nota em que dizia simplesmente: "Reassumiu sua funções o Diretor que estava preso". Reafirmo : Não aceito, no meu caso, as expressões jurídicas: "preso "e "solto". Fui criminosamente e covardemente seqüestrado por um grupo que envergonha, amesquinha e desonra a farda que veste; um grupo de fascistas rancorosos inconformados com as liberdades democráticas conquistadas pelo povo brasileiro; um grupo de criminosos comuns que um dia as próprias Forças Armadas, com o apoio do povo, eliminarão do seu seio; um grupo que , a serviço das forças mais reacionárias da sociedade brasileira teima em transformar o Exército numa corporação de "Capitães de Mato", o que jamais conseguirão. Desta verdade saí mais convicto, depois de resgatado (e não "solto") pela solidariedade comovedora de que fui alvo, inclusive a minha família, e pela repulsa que se generalizou por todo país aos intentos golpistas, logo desmascarados. Saí mais convicto dessa verdade, meus caros confrades, e quero proclamar porquê. Em Fernando de Noronha recebi visitas e tive oportunidade de palestrar com alguns oficiais. Desde o Governador do Território, Coronel do Exército, cujo respeito à dignidade da pessoa humana quero aqui ressaltar, até o mais simples soldado, passando por capitães, tenentes e sargentos, revelaram-se dignos de respeito e consideração. Não é possível nem justo confundi-los com os que denigrem a farda e degradam-se como seres humanos. Isso, não chaguei a perceber: mas os três outros seqüestradores que comigo estiveram em Fernando de Noronha foram unânimes em me afirmar: "o comandante" da operação mordaça (talvez o mesmo que eu ouvia disfarçar a voz) usava um capuz ou máscara preta. Haverá degradação maior? Haverá necessidade de comentários? São ilegais dentro da própria ilegalidade em que chafurdam e à qual tentam levar a nossa Pátria.
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Meus amigos e colegas: Eis-me no fim do relatório e das rápidas considerações que me permiti fazer. Poderia terminar, falando da minha enorme gratidão pelo que fizeram por mim os companheiros da Associação da Imprensa de Pernambuco, do Sindicato e do Clube de Imprensa. Mais uma vez os jornalistas de Pernambuco - jornalistas sem jornal, porque estamos reduzidos a duas únicas e poderosas empresas - mais uma vez o s homens de imprensa desta gloriosa terra puseram-se de pé e alertaram o Brasil inteiro contra os inimigos da Liberdade e dos Direitos do Homem. Eu não digo muito obrigado, amigos. Digo sim: Parabéns, companheiros! Bravos, companheiros! E prometo tudo fazer para estar sempre à altura da grandeza e da dignidade dos jornalistas de Pernambuco.
Recife, Junho de 1961
a) Hiram de Lima Pereira
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