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Era uma vez

Ao anoitecer do segundo milênio, ao surgir os primeiros raios de sol do terceiro milênio, o primeiro neto de Hiram Pereira torna-se pai do primeiro bisneto de Hiram Pereira. Nasceu Vinícius. Muito tempo se passou até que isso pudesse acontecer. Convém lembrar um pouco da história de sua família.

​E​​​​​​ra uma vez, uma família com um pai, uma mãe e três filhas. Com sonhos – muitos - a realizar. Sonhos pessoais submetidos à grandeza de um sonho maior: de um sonho universal. Nosso pai sonhava com um mundo melhor, não apenas para ele e para a sua família, mas para toda a humanidade. E para realizar esse sonho tudo aquilo que pudesse parecer sacrifício para as demais pessoas, para ele era o mínimo esforço que se podia fazer em prol da humanidade. Sim, ele tinha um profundo sentimento de fraternidade universal.

Em nossa casa era comum, nas noites, se reunirem pessoas de todas as opiniões políticas, religiosas e de diferentes atividades profissionais. Eram amigos políticos,  amigos poetas, colegas, jornalistas, atores, músicos, artistas plásticos, enfim, pessoas com a sensibilidade aflorada. Por lá passaram pessoas consideradas importantes à época ou que se tornariam importantes em momentos posteriores. Ensaiavam peças teatrais, cantavam, dançavam, contavam anedotas, muita conversa...muita poesia, até altas horas. As pessoas que ainda existem e lá estiveram, muito teriam para contar.

Isso ocorria, independente do que pudesse ter acontecido na hora convencionada para o almoço, por exemplo. Sim, porque éramos uma família que sentava à mesa na hora de todas as refeições mesmo quando não tinha

alimento. Quero dizer, o alimento convencional, a comida propriamente dita. Mas sentávamos à mesa e tínhamos uma certeza: comida não tinha, mas o alimento para continuar acreditando em um mundo melhor ali estava. Depois daquele momento, que seria de refeição para qualquer família, voltávamos as nossas atividades. Nos sábados tínhamos aula de música e ballet em casa. 

Os dias amanheciam com a mamãe sentada ao piano e era muito natural para nós

para ela poderia parecer uma total irrealidade.

Como poderia ela acreditar que aqueles dias, dos quais falávamos, teriam existido? E ela cresceu em um mundo totalmente vazio de tudo que transbordou no momento anterior.

E dias mais difíceis haviam de chegar.

Naquele dia meu pai enquanto arrumava algumas roupas para sair de casa e nunca mais voltar dizia a mim, que ao seu lado, paralisada, perplexa, calada, sequer imaginava que ele tinha razão em tudo o que afirmava. Ele dizia: “Esses bandidos vão atrasar a história em, no mínimo, 25 anos. É assim mesmo, um passo pra trás e dois pra frente...eles estão criando a cobra cujo veneno os destruirão. Não importa quanto tempo se passe, minha filha, não nos veremos tanto, como antes. Eu tenho que ir. Se eles me põem a mão li-quidam comigo. Serão 25 anos de silêncio mas estaremos nos Subterrâneos da Liberda-de. Não chore... a gente vai encontrar um meio de se encontrar...somos artistas...Vai ser difícil ... só um tempo... mas a luta continua... ninguém jamais conseguiu frear a histó-ria...ela é irreversível...”
Lembro-me muito bem. Dia 1 de abril de 1964. Eu ali parada não acreditava que real-mente os tempos seriam como ele dizia. Eu ali parada, confesso, não absorvia integral-mente o que ouvia, mas...
O que estaria acontecendo na cabeça de minhas irmãs? Como era para elas aquele mo-mento? Nunca ficamos sabendo uma da outra. Ali qualquer coisa se rompeu e silenciou cada uma em seu mundo. Nada mais era como antes. Tudo o que nos fora ensinado de uma luta para um mundo melhor levara a um mundo pior? Como entender? Nós nunca falamos sobre esse momento. Foi como se cada uma desse uma volta em torno do seu próprio eixo e, de costas uma para as outras, olhassem, cada uma, para o que havia em  sua frente. E agora, cada uma via algo muito diferente do que antes, viam juntas; Talvez tenha sido a primeira vez em que olhavam simultaneamente em direções opostas.
A verdade é que, ali, pararam suas almas e moveram os seus corpos...E foram...

 

Sacha Lídice Pereira
Hoje, 16 de Fevereiro de 1999
Nasceu Vinícius

despertarmos ao som de Mozart, Bach, Bethoven, Rachmaninof, Chopin, e tantosoutros universais da música. O Pai ouvia o noticiário pelo rádio, lia os jornais, formava a sua opinião em relação ao estágio em que se encontrava a sua luta, naquele dia e saía para dar mais um passo e avançar naquilo que acreditava ser irreversível, por mais retrocesso que pudesse haver.​

Ele sempre costumava dizer sorrindo: "Esses bandidos não poderão impedir o progresso da humanidade. Por mais voltas que possam dar e por mais sofrimento que possam im-pingir aos povos de todas as nações, os verdadeiros heróis da história da humanidade. Isso só revela a certeza que têm da irreversibilidade da História. A História não anda pra trás, dá recuos estratégicos e depois avança; mergulha para tomar fôlego."
E a saída dele de casa, todos os dias, em nada se assemelhava ao trabalho de rotina para ganhar o pão de cada dia, comuns em outras famílias aparentemente iguais. Eram ativi-dades relacionadas a construção de um novo mundo, em relação a qual não estava vin-culado uma remuneração.
Suas filhas nutriam sonhos que também não se expressavam da forma convencional.
Nesse solo fértil de idéias e ideais, de poesia e melodia, de arte e cultura, de uma cons-ciência universal de justiça social, crescemos e, é provável, que muito pouco tenhamos compreendido o porquê de sermos perseguidos, discriminados, e de sabermos que com-panheiros e amigos do nosso pai, pessoas a quem admirávamos e sabíamos ser de boa conduta ética e moral, eram, por vezes, presos torturados. Ainda crianças, como com-preender isso?
E o que ficaria e ficou gravado nas mentes daquelas meninas, femininas e frágeis?
Chegou o momento em que elas já eram jovens, já estavam na faculdade. Era um mo-mento dos namorados, dos “flirts”.
Nesse momento a família ganha um novo membro: mais uma menina: Hânya (1961). Ninguém poderia imaginar naquele momento que aquela menina que trouxe novas espe-ranças e novos sonhos para os seus pais, estava chegando no último instante daquele tipo de convívio familiar tão peculiar e, para ela, ao contrário, estaria  reservado um momento de total ausência de convívio e que aquela parte da história de sua família, possivelmente difícil de ser 
compreendida pelos que a viveram,
 

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